domingo, 20 de fevereiro de 2011

Em busca da memória perdida

Uma das coisas que eu mais gosto a respeito da culinária é a sua relação com a emoção. O nascimento, o aniversário, o casamento, em algumas culturas até a morte. Todas as grandes celebrações da vida envolvem de alguma maneira a comida. E que delícia ter os amigos e a família à mesa, num almoço de domingo. Ou aquele jantarzinho com o namorado, o marido, à luz de velas. E aquele sorvete de textura perfeita, comido em Florença, no inverno, com o cheiro das castanhas sendo assadas pelo meio da rua. Ou o macaron que derrete na boca, de sabor tão delicado, degustado ali na pracinha de Saint-Sulpice em Paris- a igreja está em reforma, mas há tantos cafezinhos lindos por ali... Ou ainda aquela sobremesa, de cozinha molecular, também conhecida como tecno-emocional, chamada de "bubble gum", saboreada no Alinea, em Chicago- um dos 10 melhores restaurantes do mundo, eu já grávida sem nem saber... Tudo isso também poderia ser o cházinho de erva cidreira do meu avô em Minas... Ou as balas de côco que passava dias enrolando para os meus aniversários de criança na casa da minha avó em Manaus... Ou o achocolatado trazido morninho na minha cama de manhã pela minha mãe antes da natação lá no Rio... Os aromas, os sabores são grandes "triggers" de memória. E o grande ícone disso tudo são as madeleines, imortalizadas por Marcel Proust em "Em busca do tempo perdido". Confesso que nunca havia lido a obra. Sabia em linhas gerais a "sinopse" e claro, a importância do episódio das madeleines. Mas isso é tão superficial perto da maravilha que realmente é a passagem... Sabia que meu marido, literato como ele é, tinha o livro em algum lugar da casa. Pedi a ele que lesse então para mim esse trecho enquanto descansava após uma semana exaustiva. E ao final, me emocionei. Chorei, até. Em cerca de 3 páginas a beleza de resgatar a memória do passado. Ou melhor ainda, sentir aquela emoção já vivida. O esforço consciente e inútil de trazer à tona algo que parece perdido, morto. E que de repente, "pum", aquele cenário, cheio de cores, odores, gostos, ruídos, sensações, se abre, como num livro "pop-up". Para Proust, o que faz o personagem conseguir trazer pro consiente tudo isso são as migalhas das petites madeleines em seu chá, pois como diz o autor "o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações."
E toda essa passagem termina numa epifania, num trecho de rara beleza e sensibilidade literária, que eu não poderia se não compartilhar com meus leitores, para o caso de não terem a possibilidade de ler o livro "in natura"...
"E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos, que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá."
Simplesmente lindo. Pode se emocionar.
*trechos retirados de "Em busca do tempo perdido", livro 1,pág 53, ed Ediouro, tradução Fernado Py.

Mini Madeleines de limão siciliano, chocolate branco e cardamomo

(obs: essas madeleines foram feitas no sentido de "comprar" a minha ginecologista para ela não dar um ataque pelos 3 quilos adquiridos nesse último mês, que eu insisto em dizer para mim mesma, nada têm a ver com o blog!)

100g manteiga sem sal
3/4 xic farinha de trigo
1/2 xic farinha de amêndoas
1/2 xic + 2 col sopa açúcar
raspas de 2 limões sicilianos pequenos
1 col chá extrato de baunilha
1 col chá sementes de cardamomo
3 ovos
1/2 col chá sal
75g chocolate branco

Derreta a manteiga numa panelinha. Retire do fogo e adicione as raspas de limão, o cardamomo e a baunilha. Reserve.
Numa tigela bata com o fouet os ovos e o sal, até espumarem. Adicione as farinhas e o acúcar. Incorpore a manteiga (não pode estar muito quente!), e por fim o chocolate branco picado.
Cubra e leve a massa à geladeita por 2-12 horas.
Pré-aqueça o forno médio alto.
Coloque a massa em forminhas próprias para madeleines e asse por cerca de 15 min- até as beiradas estarem bem douradas.
Deixe esfriar.
As madeleines devem ser comidas no mesmo dia, de preferência.
*Rende 60 mini madeleines

2 comentários:

  1. A receita deve estar sublime, mas está aí, para ser comprovada. Agora o texto disse tudo. Parabéns.
    Beijos

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  2. Que bom q vc gostou! Não é à toa q essa passagem é tão célebre, né? Fez o gnocchi?
    Beijo Grande!

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